sexta-feira, 27 de março de 2015

Che Guevara

Os colonos invadem, e atrás deles os soldados vão corrigindo a fronteira.
 
Desde 1948, os palestinos vivem condenados a humilhação perpétua. Não podem nem respirar sem permissão. Perderam sua pátria, suas terras, sua água, sua liberdade, tudo. Nem sequer têm o direito de eleger seus governantes. Quando votam em quem não devem votar são castigados. Gaza está sendo castigada. Converteu-se em uma ratoeira sem saída, desde que Hamas ganhou limpamente as eleições de 2006. Algo parecido havia ocorrido em 1932, quando o Partido Comunista triunfou nas eleições de El Salvador. Banhados em sangue, os salvadorenhos expiaram sua má conduta e desde então viveram submetidos a ditaduras militares. A democracia é um luxo que nem todos merecem.
São filhos da impotência os foguetes caseiros que os militantes do Hamas, encurralados em Gaza, disparam com torpe pontaria sobre as terras que tinham sido palestinas e que a ocupação israelita usurpou. E o desespero, ao borde da loucura suicida, é a mão das bravatas que negam o direito à existência de Israel, gritos sem nenhuma eficácia, enquanto a muito eficaz guerra de extermínio está negando, desde há muitos anos, o direito a existência da Palestina. Já a pouca Palestina que sobra. Passo a passo, Israel a está apagando do mapa.
Os colonos invadem, e atrás deles os soldados vão corrigindo a fronteira. As balas sacralizam o despojo, em legítima defesa. Não há guerra agressiva que não diga ser defensiva. Hitler invadiu a Polônia para evitar que a Polônia invadisse a Alemanha. Bush invadiu o Iraque para evitar que o Iraque invadisse o mundo. Em cada uma de suas guerras defensivas, Israel tem devorado outro pedaço da Palestina, e os banquetes prosseguem. A comilança se justifica pelos títulos de propriedade que a Bíblia outorgou, pelos dois mil anos de perseguição sofridos pelos judeus, e pelo pânico gerado pelos palestinos diante do cerco.
 


Dona Martina tem o jornal nas mãos tremulas pela idade. Pelas tensões que a vida lhes ofereceu. Toma seu diário e continua seus escritos.
Che Guevara olhou para cima enquanto um oficial boliviano, agachado a pouco mais de um metro, fez aquela que seria sua última foto vivo. Estava sentado no chão de terra, as costas apoiadas na parede de barro da pequena escola La Higuera, onde era mantido preso desde o dia anterior. O Oficial saiu e um sargento chamado Mário Terán Salazar entrou. Tinha na mão um fusil de repetição M-2. Che se pôs de pé. Os dos se olharam e o boliviano hesitou em disparar enquanto ouvia, vindo da sala ao lado, os tiros que terminaram com a carreira  de Simón Cuba. Terán engatilhou então a arma e disparou uma rajada de oito tiros. Pelo menos três cruzaram os pulmões de Guevara. O seu corpo bateu na parede e desabou no chão. Era o fim de uma história, ou começo dela. Os soldados tiram fotos do corpo inerte. Queriam lembranças. Enquanto isso Felix Rodriguez, um cubano traidor, contratado pela CIA meses antes, transmitia mensagem em código  pelo rádio e fotografava também. Anotou o horário e local da morte; 1h 20min da tarde, La Higuera, Bolívia.
Os soldados receberam a ordem de colocar o cadáver sobre uma maca e amarrá-lo ao esqui do helicóptero para leva-lo a Vallegrande, próximo a Santa Cruz de la Sierra. Seu corpo fora transportado exposto ao vento o que lhe deixou de olhos abertos quando o pouso aconteceu vinte minutos depois. Levado ao ao hospital Señor de Malta para que o corpo fosse tratado para que durasse um pouco mais já que aquele era um cadáver espacial. Depois de lavado o corpo de tche teve as bochechas barbeadas o cabelo penteado para traz. O cadáver de Tche permaneceu a  noite toda na lavanderia do hospital. Colocaram novamente a rupa imunda, suja de lama e sangue, e o aprontaram para o grande espetáculo que seria a sua apresentação aos jornalistas.
A versão oficial seria a de que fora morto num confronto armado, porém com o testemunho de dezenas de camponeses de La Higuera eu viram Guevara caminhando por alguns quilômetros até a pequena vila , o governo decidiu anunciar que o argentino morreu devido a ferimentos em combate.  A versão circulou por algumas horas até que deram-se conta de que ninguém marcha por dois quilômetros com oito tiros no peito. Então o presidente da Bolívia general René Barrientos confiante na popularidade da execução, assumiu que aordem fora sua de executar Guevara.
Começou a discussão, a portas fechadas, sobre as consequências de um funeral e da peregrinação que seria de comunistas ao seu túmulo. Enuanto deliberavam os militares informaram Buenos Aires e Brasilia sobre todo o ocorrido. Os dois governos ofereceram a Barrientos toda ajuda de que precisasse. No palácio da Alvorada o alívio foi evidente. Semanas antes os militares brasileiros tinham sido informados de que uma das  possíveis missões na Bolívia do intelectual francês Régis Debray, naquele momento já preso e julgado pela justiça militar, era servir de elo entre Havana, Che Guevara e Carlos Marighella.
Dona Martina chora de novo.
― A Palestina está vivendo o que já vivemos na América. 
― O que você disse vó?
― Nada, minha querida. Estou falando com os meus botões.
            Seca as lágrimas com a ponta dos dedos. Uma raio de sol  brilhante entra pela janela e ilumina seu rosto molhado, que ela tenta esconder da garota. Valentina lhe mostra os recortes da revista e, com sua pequena mãozinha,  ajuda a secar  a sua face. 
― Vó, vamos guardar as revistas e comer bolo de chocolate?

sábado, 27 de outubro de 2012

'Labirinto', de Paula Taitelbaum



            
            No meio daquele labirinto de vídeos eróticos, ele esperava encontrar alguém. Rezava para que fosse o minotauro. Ou melhor ainda: para que fosse um Teseu cheio de tesão. De repente, sentiu que alguém atrás atravessava sua roupa. Ao virar-se, seus olhos encontraram os de uma garota. E logo ele, que sempre teve a mais absoluta e resoluta certeza de que não gostava de garotas, logo ele, foi atingido em cheio na massa mole e compacta que o fazia matéria viva.

           

' Asas', de Christina Dias



            A mosca deixava pegadas na janela sobre a mesa onde ela trabalhava. Ela escrevia com caneta Bic. A mosca usava as patas para esticar as fibras das suas asas de mosca de casa. Quando chovia, as luzes deixavam o vidro com ar de festa e faziam da mosca bailarina que voa. Pequenos voos de não ir embora. Embora fosse da sua natureza partir. A janela fechada criou vícios de ser assim. Estavam seguras a mosca e a dona que escrevia.
         Ela sentou decidida como quem tem uma história para contar.Pegou a caneta Bic e levou até a vidraça espremendo a mosca num estalo. Abriu a janela e saltou.
            O vento fez voar todas as ideias da mesa.




'Paula números', de Paulo Scott



            — A Paula taí?
            — Olha, rapaz, meninas atendendo por esse nome é o que mais tem aqui. Sabe como ela é?
            — É uma com os olhos estranhos.
            — Ah...a vesga?
            — Não, é uma com os olhos assim...
            Tira do bolso do casaco uma garrafa quebrada (dessas quebradas em borda de mesa) de um azul acinzentado, com sangue espalhado na superfície.
            — Ó... dessa cor...



'Eterno', de Cláudia Tajes



            Conheceu João às nove da noite. Nove e meia, namorava sério. Faltando para as dez, noivou. Às onze, pensava em filhos. Onze e quinze, fazia filhos. Meia-noite e pouco, ima­ginou a vida inteira com ele. Foi para sempre até às três da manhã.


'Era vidro e se quebrou', de Cíntia Moscovich



            Copos.
            Taças, cálices, com pé, sem pé, vidro, plástico, cristal. Ela adorava comprar, cada dia um diferente. E comprava.
            Copos.
            O marido vivia se queixando e se queixando: não havia mais lugar para tanto copo, aquilo era maluquice.
            Até que ela resolveu dar um basta no falatório: pegou vassoura, martelo e maçarico e foi direto aos copos — quebrou, rebentou, fundiu. Tudo, tudinho.
            A razão tinha vencido,e ele ficou feliz da vida. Pelo menos até que abriu a geladeira: um mar de requeijão.
            Copos.

        

'LA MENDIGA DE NÁPOLES' , de Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares



            Cuando yo vivia en Nápoles, había en la puerta de mi palácio una mendiga a la que yo arrojaba monedas antes de subir al coche. Un dia, sorprendido de que no me diera nunca las gracias, miré a la mendiga; entonces vi que lo que había tomado por una mendiga más bien era un cajón de madera, pintado de verde, que contenía tierra colorada y algu bananas médio podridas.
            
max jacob, Le Cornet à Dês